quinta-feira, 9 de junho de 2011

Continuação sobre o texto: "Intervenções sobre a transferência"

Por isso, Dora vai se identificando com o Sr k assim como com o próprio Freud. O segundo sonho foi um sonho transferencial no qual ela desperta com uma alucinação do cheiro de fumaça. Freud colocou que esta era uma identificação recalcada. Muito mais do que uma identificação, Lacan postula que essa alucinação correspondeu ao estado crepuscular do retorno ao eu. A relação com Freud e com o senhor k manifesta a agressividade do estádio do espelho.

Porém, mais do que a agressividade, Lacan coloca que Freud “deveria” ter se aprofundado na relação de Dora com a sra k. Ela, lhe fornecia a chave do mistério do feminino. Após Dora se aceitar como objeto de desejo esgotando o mistério que procurava na sra k, aí sim, poderia talvez estar “curada”.

“Assim com em toda mulher...o problema de sua condição, está, no fundo, em se aceitar como objeto de desejo do homem, e é esse o mistério, para Dora, que motiva sua idolatria pela sra k, do mesmo modo que em sua longa meditação diante de madona, e em seu recurso ao adorador distante, ela empurra para a solução que o cristianismo deu a esse impasse subjetivo, fazendo da mulher o objeto de um desejo divino ou um objeto transcedental do desejo, o que dá no mesmo”p221.

Lacan coloca que se numa terceira inversão dialética Freud tivesse orientado Dora para o reconhecimento do que era para ela a sra k, e esgotado o segredo de sua relação com ela, o tratamento caminharia. Freud identificou a falha na transferência e não na interpretação. Para Lacan a falha foi no adiamento da interpretação e não na transferência. Freud não se aprofundou no vínculo homossexual de Dora com a sra k.

Lacan entende que este não aprofundamento se deve que Freud reconheceu que durante muito tempo não foi possível se depara com essa tendência homossexual por preconceito. Assim, não pode agir de maneira satisfatória. Mesmo Freud reconhecendo que nas histéricas essa tendência é constante, ela não conseguiu agir neste ponto.

Lacan analisa que esse preconceito é o mesmo que mascara inicialmente a concepção do Édipo. Colocando o complexo como algo natural, sendo que não é. A primazia do personagem paterno no Édipo não é natural. Laca cita: “...é o mesmo preconceito que se exprime com simplicidade no conhecido refrão: tal como o fio para a agulha é a menina para o menino”p222.

Além disso, Lacan coloca que Freud simpatizava demais com o srk pois ele encaminhou o pai de Dora e se colocou demais no lugar dele. Por isso, voltava excessivamente na questão do amor que o Sr k suscitava em Dora. A partir deste olhar tendencioso, outro problema que Lacan coloca é: como Freud sempre interpretava que Dora se confessava sobre o Sr k, Dora se opõe. A crítica de Lacan: “...A sessão em que ele acredita havê-la reduzido a “não mais contradizê-lo”...é concluída por Dora num tom bem diferente. “Não foi grande coisa que apareceu”, diz ela, e é no começo da sessão seguinte que se despede de Freud.”223.

Lacan então se pergunta que aconteceu no lago que Dora adoeceu? Se prender ao texto para validar qualquer interpretação. O senhor K na cena do lago, só falou poucas palavras, porém, decisivas. “minha mulher não é nada para mim”. Dora deu-lhe uma bofetada. Se ela não é nada para você, que é você para mim? Que seria para Dora esse objeto que ela olhou durante anos com um certo feitiço e que ele acabou de romper com sua fala?

Após a cena, aparece a fantasia de gravidez. Essa fantasia, Lacan coloca que é comum nas histéricas em função de sua identificação viril.

A questão da transferência que Freud disse não ser possível de teorizar neste caso, é entendida por Lacan como a contratransferência. A contratranferência definida como a soma Dos preconceitos, paixões. O próprio Freud não entende que Dora pode ter transferido para ele o personagem paterno. Lacan afirma que interpretar a transferência é preencher com um engodo o vazio. Ao invés de ser uma questão Dora denegar a observação de Freud sobre as intenções dela com o Sr k, poderia ter sido uma questão mais favorável, conduzi-la ao objeto de seu interesse real- sra k..

Para Lacan, a transferência tem sempre o mesmo sentido. O de indicar momentos de errância por parte do analista, para orientá-lo, para colocá-lo em seu lugar, de não agir positivo.



 
 
 










Intervenção sobre a transferência

Escritos- 1951

Intervenção sobre a transferência.

Na experiência psicanalítica, o sujeito se constitui por um discurso que pode ser produzido pela simples presença do analista. Lacan coloca que “a psicanálise é uma experiência dialética, e essa noção deve prevalecer quando se formula a questão da natureza da transferência”p215.

O autor afirma que existe um temor por parte dos analistas em relação á verdade do que os pacientes falam sobre suas doenças. “Se Freud assumiu a responsabilidade...de nos mostrar que existem doenças que falam, e de nos fazer ouvir a verdade do que elas dizem, parece que essa verdade...inspira um temor crescente nos praticantes que perpetuam sua técnica” p.216.

O caso Dora, foi o primeiro caso em que Freud reconheceu o papel do analista.

Lacan, neste texto, fundamentará sua demonstração do caso Dora  por ele ser representante na experiência da transferência e ser o primeiro em que Freud reconheceu que o analista tem seu papel.

O caso Dora é exposto por Freud sob a forma de uma série de inversões dialéticas.
É a primeira vez que Freud usa o termo transferência.
"É por aí que tentaremos definir em termos de pura dialética a transferência chamada negativa no sujeito, como sendo uma operação do analista que a interpreta.”p.217.
Lacan coloca que Dora se torna um objeto de uma troca odiosa. Devida a relação de seu pai com a sra k, ela é oferecida ao Sr k. Seu pai, não percebe.
1)Primeiro desenvolvimento da verdade: Dora entrega-se á Freud, falando de suas lembranças com um rigor que contrasta com sua imprecisão biográfica que é própria da neurose.

1a) Primeira inversão dialética:
  
Freud diz á Dora: “Qual é sua própria parte na desordem de que você se queixa?” Então, aparece o segundo desenvolvimento da verdade.



2) Segundo desenvolvimento da verdade: Dora foi cúmplice e protetora vigilante para manter a relação dos amantes. Com seu silêncio, protegeu. Dora participou desta “corte”. Ela é objeto por parte do srk. “...a relação edipiana revela-se constituída em Dora por uma identificação com o pai, favorecida pela impotência sexual deste, aliás vivenciada por Dora como idêntica á preponderância de sua situação de fortuna”218-219.

“Essa identificação transparece, com efeito, em todos os sintomas conversivos apresentados por Dora, e sua descoberta dá início á eliminação de um grande número deles.”219.

Dora então de repente manifesta o ciúme da relação amorosa do pai. Que significa eliminar alguns sintoma e manifestar subitamente o ciúmes? O que tem haver?

2a) Segunda inversão dialética: Freud observa que não é o ciúme do objeto que prepondera, mas sim, que ele esconde um interesse pela pessoa do sujeito rival. Interesse esse, que se exprime de forma invertida. Daí, surge um terceiro desenvolvimento da verdade.



3) Terceiro desenvolvimento da verdade: O fascinado apego de Dora pela sra k. Pela sua maravilhosa brancura corporal, as confidências que ela ouve sobre a relação da sra k com o marido, trocas de amabilidades entre as duas, “como embaixatrizes mútuas de seus desejos junto ao pai de Dora.”p 219.

A pergunta então, é: Dora, se você se sente despossuída perante a sra k, como não lhe quer mal? Porque é tão leal á ela? Guarda o segredo. Com este segredo, vamos á terceira inversão dialética.

3a) Terceira inversão dialética: O valor de Sra k para Dora, o real valor deste objeto. O valor de um mistério, do mistério de sua feminilidade corporal. No segundo sonho esse mistério se evidencia. A imagem mais distante de sua infância que Dora alcança. A imagem dela chupando o dedo com o polegar esquerdo e com a mão direita puxando a orelha do irmão.

Lacan coloca que parece que esta, parece ser a matriz imaginária em que vieram desaguar todas as situações que Dora desenvolveu em sua vida. O autor continua dizendo que essa cena é uma ilustração da teoria que ainda surgiria em Freud dos automatismos de repetição. E que por essa cena, podemos tirar a medida do que siginificava para Dora mulher e homem.

“A mulher é o objeto impossível de separar de um desejo oral primitivo, e no qual é preciso, no entanto, que ela aprenda e reconhecer sua própria natureza genital. (é espantoso, aqui, que Freud não veja que a determinação da afonia, durante as ausências do Sr k, exprime o violento apelo da pulsão erótica oral no “enfim sós” com a sra k.”220.

Lacan postula que para ter o acesso do reconhecimento da feminilidade, seria preciso Dora a “assunção” de seu próprio corpo para que não fique despedaçada e constitua sintomas de conversão. Despedaçada no sentido do estádio do espelho.

Para se ter acesso ao corpo o único intermediário que ela teve foi a imagem original. Esta imagem original nos mostra que ela teve uma abertura para o objeto. Isto significa que o irmão (parceiro masculino) foi quem “permitiu” que Dora pudesse se alienar na alienação primordial. Esta alienação primordial é aquela em que o sujeito se reconhece como eu. Foi a diferença etária que permitiu isso.